Medidas Fiscais Repressivas ao Trabalho Escravo
- Vanessa Benelli
- 20 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 23 de jan.

Dados sobre trabalho forçado e a escravidão moderna
Trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou servidão por dívidas são elementos que configuraram condições análogas à de escravo. Reduzir alguém a qualquer uma dessas situações é crime, tipificado no art. 149 do Código Penal[1]. A pena é aumentada se o crime for cometido contra criança ou adolescente e, ainda, se for motivada por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
De acordo com a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério da Economia[2], desde 1995, mais de 55 mil trabalhadores que estavam em condições análogas às de escravo foram resgatados. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[3], o trabalho forçado está presente em todas regiões do mundo e em todos tipos de economia:
Mais de 40 milhões de pessoas foram vítimas da escravidão moderna em 2016, sendo que 71% eram mulheres e meninas. Desse total, cerca de 25 milhões de pessoas foram submetidas a trabalho forçado e 15,4 milhões foram forçadas a se casar.
Das 24,9 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado, 16 milhões foram exploradas no setor privado (por ex. trabalho doméstico, construção ou agricultura), 4,8 milhões sofreram exploração sexual forçada e 4 milhões estavam em situação de trabalho forçado imposto por autoridades de governos.
As mulheres representam 99% das vítimas do trabalho forçado na indústria comercial do sexo e 84% dos casamentos forçados.
Uma em cada quatro vítimas da escravidão moderna são crianças.
Os trabalhadores migrantes e os povos indígenas são particularmente vulneráveis ao trabalho forçado.
Diante deste triste cenário, medidas vêm sendo adotadas por diversos países para combater o trabalho forçado e a escravidão moderna, dentre eles o Brasil, em que foi editada a Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH 4/2016, prevendo a criação e a divulgação ao público de um cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição análoga à de escravo ( a chamada “lista suja do trabalho escravo”).
A medida em comento foi questionada no Supremo Tribunal Federal, que, no entanto, confirmou a sua constitucionalidade. No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio, foi indicado, dentre outros aspectos, que a inclusão do empregador ocorre após a tramitação de processo administrativo, iniciado com a lavratura de auto de infração e finalizado com decisão administrativa irrecorrível, sendo assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Apesar das divergências que a matéria suscita, especialmente quanto à competência legislativa, alguns Estados adotam mecanismos complementares de combate ao trabalho escravo, como o cancelamento de inscrição estadual, divulgação de lista com os nomes das empresas que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, vedação à concessão de benefício fiscal e de financiamento público de qualquer espécie, impossibilidade da inclusão em programa de recuperação fiscal[4].
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – CNC ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5465, atualmente sob a relatoria do Min. Nunes Marques, pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. O objetivo da ação é a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 14.946/2013, do Estado de São Paulo, a partir da alegação de usurpação da competência reservada à União para execução da inspeção do trabalho.
Na lei estadual acima mencionada, são previstas medidas adicionais de repressão ao trabalho escravo na esfera fiscal-administrativa, indicando dentre elas, o cancelamento de inscrição da empresa no cadastro de ICMS, a perda de créditos tributários e a inclusão do empregador em relação de infratores.
O Parecer apresentado pela Procuradoria-Geral da República, em 18 de novembro de 2020, acertadamente, indica:
(a) a possibilidade de o ente estadual estabelecer regras relacionadas ao poder de polícia administrativa voltadas à repressão ao trabalho escravo, resultando no exercício da competência comum do art. 23, X, da CF/88, a fim de reunir esforços para combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização;
(b) a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre direito tributário (art. 24, I, CF/88), sendo válida a fixação de regras estaduais relacionadas ao poder de polícia fiscal-administrativa;
(c) não configura usurpação de competência privativa da União para legislar sobre o direito do trabalho quando a lei estadual estabelece mecanismo complementar de repressão ao trabalho escravo em seara distinta da trabalhista;
(d) o estabelecimento de sanções administrativas para o combate ao trabalho escravo deve observar a apuração da conduta ilícita pelas autoridades competentes, respeitando o devido processo legal;
(e) a divulgação de lista das empresas que foram apenadas pelo uso direto ou indireto de trabalho em condições análogas à de escravo é medida de publicização do resultado da apuração administrativa, sem caráter sancionatório; e
(f) a União detém competência privativa para legislar sobre direito comercial (art. 22, I, CF/88), não tendo validade a norma estadual na parte em que proíbe os sócios de empresa penalizada pelo uso de trabalho escravo de exercerem atividades empresariais.
Nesse contexto, nota-se ampla fundamentação constitucional a legitimar as medidas fiscais-administrativas adotadas por Estados, alinhadas ao combate da triste realidade apresentada pelas estatísticas sobre os trabalhadores ainda submetidos a condições análogas à de escravo.
No plano ideal, essas medidas não seriam necessárias diante de uma eventual ausência dos fatos. Contudo, a realidade ainda exige uma postura ativa de todos, buscando efetividade dos fundamentos da nossa República Federativa (cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho) e alcance dos nossos objetivos: construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades socais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Paralelamente às medidas de fiscalização, punição e repressão àqueles que promovem o trabalho forçado e a escravidão moderna, não se pode perder de vista que a educação é um instrumento indispensável para conscientização de toda a sociedade e consequente mudança do atual cenário.
Por fim, cabe a cada um de nós fazermos a nossa parte e assumirmos protagonismo nesta luta, deixando, por exemplo, de não adquirir produtos e serviços de fornecedores indicados na lista atualizada pelo governo federal e pelos Estados.
LINKS PARA CONHECER, ACOMPANHAR E COMPARTILHAR:
à Acesse o cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição análoga à de escravo, atualizado em 16/10/2020:
à Acompanhe o portal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – Combate ao Trabalho Escravo e Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo:
à Conheça as ações e projetos do “Escravo, nem pensar!”, programa educacional da ONG Repórter Brasil:
à Dados, campanhas e canais de denúncia divulgados pela Organização Internacional do Trabalho:
[1] Redução a condição análoga à de escravo - Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Em 2016, foi incluído o art. 149-A - Tráfico de Pessoas - Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: [...] II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; [...]. [2] Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/trabalho/julho/inspecao-do-trabalho-ja-resgatou-55-mil-trabalhadores-de-condicoes-analogas-as-de-escravo>. Acesso em: 19 nov. 2020. [3] Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 19 nov. 2020. [4] Vide: Santa Catarina, Lei nº 17.898/2020; São Paulo, Lei nº 14.946/2013.
Adorei a abordagem. Texto lúcido e bem escrito :)